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Limítrofe

Sabe-se pouco de sua real história antes de chegar aqui na cidade grande, mas morava com a mãe no meio do sertão de uma cidadezinha pequena, numa das áreas mais pobres do país. Ninguém duvida que para mãe ele praticamente não passava do sustento. O pai, há muito distante, sempre que podia mandava um dinheirinho para que a criança crescesse sadia e fosse para a escolar. Homem simples, trabalhador, pedreiro sisudo, mas de ótimo coração, tudo que sempre quis foi ficar o mais distante daquela gente, ex-mulher e família, mas a alma e a saudade de pai foi batendo e um dia foi pegar o menino.
O menino mirrado desceu do ônibus assustadíssimo, mas com expressão confiante. A grande cicatriz no rosto era o sinal seu lado "capeta". Mesmo quieto e com jeito tímido a maneira como fixava o olhar no olho de quem conversava e nas coisas ao redor dizia ao que tinha vindo. É um olhar diferente, destes que só poucos adultos têm. Ganhou roupa nova, casa nova e uma mãe nova. Aos poucos também ganhou uns quilos e contornos mais adequados aos de sua idade, mas os tempos de escassez do sertão marcaram em seu corpo pequeno, quase atarracado. A esperteza e o jeito de "capeta" permanecem como ferramenta para a sobrevivência.
E sem demora foi mandado para a nova escola.
- Me chamam quase todos os dias na escola. O outro dia ele bateu num menino maior que ele. A professora diz que ele apronta muito, que não para quieto na classe, faz confusão; diz a madrasta - A diretora ameaça expulsar; disse que ele precisa de tratamento, que precisa de psicanalista.
E as histórias sobre os aprontos do "capeta" se sucedem. Pegou todo o dinheiro da casa, mudou de lugar e confessou o crime. Ainda faz pipi na cama. Invadiu a sala dos professores e foi olhar todos os papeis que encontrou. Pediu uma galinha para a mãe e cuida bem dela. Dentre outras tantas. E a mais louca aventura de sua curiosidade: tentou se enforcar - literalmente.
- Ele apareceu na cozinha com os olhos arregalados olhando para mim e não falava nada. Eu fiquei perguntando "o que é menino?" e ele continuou com aqueles olhos arregalados. Perguntei umas três vezes até perceber que estava com uma corda muito apertada enrolada no pescoço. Peguei uma faca e, desesperada, consegui cortar a corda e ele voltou a respirar. Ai só falou que queria saber como era "ficar enforcado".
O menino foi levado para passear numa loja de alta tecnologia, coisa muito distante de sua realidade. Mesmo com tanta novidade a sua volta pouco muda sua expressão sempre resoluta. Praticamente não fez perguntas, simplesmente olhou, com o mesmo olhar firme que lhe é tão característico. Na lanchonete da loja toma seu lanche como se aquilo ali, tão rico, tão caro, tão sofisticado, tão distante da sua periferia lhe fosse coisa do cotidiano. A qual mundo pertencerá?
A sofrida madrasta, sem prática com filhos, mas muito dedicada, aos poucos vai percebendo que as professoras e diretora são incapazes de lidar com as travessuras que a rapidez da cabeça do moleque cria a cada minuto. Não parece ser um gênio, ainda não foi percebida alguma habilidade especial, mas ele pensa diferente e percebe a vida além do normal e dos que estão à sua volta. Neste mundo novo defende-se como pode e mesmo mirrado reage ou bate em todos que ousam desafiá-lo. Foge por instinto da vala comum.
Qual é a definição de inteligência? Normalidade? Insanidade? Conceitos vêm sendo transformados, mudados, esquecidos, perdidos, linchados, jogados no lixo, descobertos, redescobertos. Mudou muito, mudou quase tudo neste último século. A forte influência religiosa sobre algumas ciências, principalmente as relativas à saúde mental, fez durante milênios de Deus e diabo o único caminho para o reconhecimento de sanidade ou doentio. O que era errado (pecado) ia para o arder do fogo da santa inquisição e pronto, estava resolvido. Se hoje já não se queima mais gente literalmente, ainda o fazemos em outras formas.
Recentemente, na década de 30, foi cunhada a expressão limítrofe (borderline) para casos que não podiam ser encaixados nem na inteligência normal e sadia, nem no louco ou retardado. A medicina começou a reconhecer novos caminhos para a definição de saúde mental e muita gente que era considerada louca passou a ser sadia. Junto com este fato muita coisa que era estranha passou a ser considerada normal. Usar uma bicicleta como ótimo exemplo. Ampliou-se a forma e o leque de julgamento o que é maravilhoso, mas ainda temos muito pela frente até chegar ao sensato.
Ao lado do mecânico de bicicletas o moleque fica praticamente parado. A desmontagem do sistema de freios é realizada para limpeza, troca de pastilhas e ajuste. O mecânico entrega ao "capeta" uma chave inglesa para que ele se distraia. Este passa a manusear a ferramenta, girando a rosca sem fim num sentido e noutro. O mecânico volta ao seu trabalho e quando vai colocar a segunda sapata ouve um suave - Está errado. Dá com os olhos do menino fixos em sua mão.
- O que está errado?
- Você colocou a outra diferente.
- O que coloquei diferente? O menino desce do tamborete e em silêncio praticamente encosta a ponta do dedo no espaçador. O mecânico percebe que o erro. - Parabéns. Você está certo. É assim. Quando eu terminar aqui você quer pedalar?
- Não; diz o menino num tom de fim de conversa, voltando ao tamborete de onde havia saído para apontar o erro.
A curiosidade sobre o que será o futuro do moleque capeta é grande. Ele está deslocado porque pensa e age diferente, uma história tão comum. No meio da boiada, da qual ele definitivamente não faz parte, mostra a estranha capacidade de perceber, analisar e tirar suas próprias conclusões. E há um detalhe importante que ninguém ainda se deu conta: com seu passado que lhe é difícil acreditar nos outros.
Numa sociedade limítrofe como a nossa, não só a brasileira, meninos como este vão se sobressair, uns por bem outros por mal. A questão é saber a quem falta interlocução, à massa ou ao individuo. Para os diferentes é duro estabelecer contato com a burrice e a mediocridade; e é o que impera por aí. Situação muito comum quando se lida com as coisas da bicicleta.

 
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