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Caçador de bebês

A avenida Brigadeiro Faria Lima tem, em cada sentido, quatro faixas no trecho onde cruza com a avenida Juscelino Kubistchek. Nos domingos frios pela manhã é muito parecida com o resto da cidade; um imenso espaço asfaltado aberto com suas faixas brancas contrastantes pintadas sobre o cinza petróleo claro marcando o vazio. O canteiro central tem vegetação discreta e baixa. Há no entorno grandes edifícios que não chegam a desviar a atenção, nem gerar uma luminosidade especial ou peculiar, criando problemas para eventuais motoristas que naquele frio, hora e dia passe por lá.

Na própria avenida Faria Lima, um pouco à frente, há à direita um posto de gasolina com loja de conveniência 24 horas, vizinhos de um McDonalds, ambos com grande recuo, o que amplia o espaço aberto da avenida, a visão do caminho correto, as interferências que possam ocorrer. As marcações de segurança, sinalização horizontal e vertical, são claras, inconfundíveis. Um pouco mais a frente há um semáforo que bem sinaliza a rua Leopoldo Couto Magalhães e sua faixa de pedestre perfeitamente pintada. Não há qualquer outra interferência para quem sai do cruzamento da avenida Juscelino Kubistchek e segue no sentido da Leopoldo Couto Magalhães.

Na manhã deserta e silenciosa, ao abrir o sinal da Juscelino, um único carro parte em direção a Leopoldo Couto Magalhães e começa a acelerar forte. O grito do motor destoa, chama a atenção dos dois funcionários do posto de gasolina e McDonalds que conversavam. Mas eles trabalham lá há tempo, e bem sabem que o semáforo da Leopoldo estará fechado, e por isto voltam o olhar do carro para o caminho por onde ele irá passar.

Ao verificar o semáforo fechado, vêem uma mãe empurrando um carrinho de bebê na faixa de pedestre. Não há mais que 150 metros entre o carro que segue acelerando e a mãe com o carrinho. Há muita distância entre os dois e tempo para que ela chegue com segurança no canteiro central da Faria Lima. Basta apressar o passo por simples segurança. Mas o carro segue acelerando, trocando marchas, patinando rodas, no meio da avenida. A mãe acelera o passo, mas ainda está a meio caminho para cruzar a avenida. E então, os dois funcionários percebem que ali começa uma caçada.

O carro vai mudando suavemente sua trajetória para esquerda, seguindo claramente a fuga daquela mãe. Ela aperta mais o passo, e logo, em desespero passa a correr. O carrinho de bebe chacoalha, pula, balança ao passar sobre cada uma das faixas brancas pintadas no asfalto. Os dois funcionários perdem o fôlego. Lá vem ele; 40, 25, 10 metros entre o carro que voa e a mãe, tão próxima de alcançar a segurança da calçada central. Há um macabro silêncio que começa na fração de segundo em que o carro encobre a visão da mãe e do carrinho de bebe. O carro faz um movimento brusco em cima dela, e se pode ouvir o gritar dos pneus. Mas o que foi aquele barulho? Grito da mãe? O silêncio apavorante se estende até quando as pessoas percebem que o carro já havia cruzado a rua. Constatam que não se ouviu o barulho seco do impacto contra o corpo. Concluem que não houve um corpo voando. Suas mentes voltam à realidade, voltam à vida. A visão do carro se perde desembestada pela Faria Lima. A mãe, ajoelhada e curvada, com o carrinho de bebe já sobre a calçada, tem suas pernas e pés ainda sobre a última listra branca da faixa de pedestre. Ela respira tão fundo que é possível ver seu ventre entrar nas costelas, olha para seu bebê, põe-se trêmula em pé, empurrando o carrinho mais alguns metros para a segurança do meio da vegetação, no canteiro central. Senta-se e chora silenciosamente, rosto aflito e deformado; choro que mal os funcionários podiam ouvir, mas que doía longe.
 

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